segunda-feira, 11 de março de 2013

CAMINHO PARA O NADA


O ciclo da imagem e o ressurgimento do cinema

alimenta este fogo com fogo, até que se extinga e obterás a coisa mais estável que penetras todas as coisas, e um verme devorou o outro, e emerge esta imagem” (Abraham Eleazar) 


Muito já se disse sobre o fim do cinema, sobre a desmistificação da experiência cinematográfica e da sua desintegração a partir da multiplicação da imagem. A limitação imposta ao longo desses anos pelo cinema dominante - de que a imagem deve ser cada vez mais revestida de um manto de realismo - impõe à imagem uma falsa noção de verdade, reduzindo o cinema a uma espécie de simulacro. A imagem fílmica perde sua aura, sua fascinação diante do mundo, para dar lugar a uma conceituação mimética da realidade, provocando uma desorientação diante das novas perspectivas e possibilidades de se vivenciar o mundo através das imagens atualmente. A experiência do cinema, sufocada ainda pela pulverização massificada da imagem, provoca uma série de sintomas que dizem respeito diretamente ao ver. Há que se assumir, então, uma postura crítica diante da imagem nos dias de hoje. Ciente disso, Monte Hellman busca redefinir, em Caminho para o Nada, as nuances que remodelam uma nova ordem da imagem nos tempos atuais, mas que em momento algum decretaram o fim do cinema enquanto ritual sagrado de apreensão de experiências fílmicas. Por isso, o filme é, acima de tudo, sobre os valores adquiridos pelas imagens hoje e sobre como elas se constroem até chegarem refletidas para o público. É, portanto, um jogo de espelhos onde não sabemos mais o que é reflexo de quê. O que é ilusão e o que é verdade.
Por isso, Caminho para o Nada é essencialmente um filme sobre ver; sobre como e para onde direcionar o olhar diante dessas imagens. Funciona da mesma maneira que boa parte dos filmes de Abbas Kiarostami (Five, Ten, Shirin, ABC Africa), onde a pedagogia do olhar convida o espectador a sair de sua posição de passividade, desafiando-o, expurgando dele a sua posição de vouyer, e convidando-o a “ler” imagens, e não apenas apreciá-las. Afinal, é preciso estar muito atento ao jogo proposto por Monte Hellman - que é, no final das contas, o próprio jogo das imagens - para que não se caia na armadilha de definir o filme apenas como metalinguagem. Se há um jogo metalinguístico operado por Monte Hellman, antes de uma referência ou uma homenagem ululante sobre o "fazer cinema", é o de transportar  o espectador para dentro do filme, tirando-o de sua passividade através da ilusão da participação estabelecida. O espectador toma para si o papel de hermeneuta que precisa interrogar minunciosamente as entrelinhas da imagem para, quem sabe então, decifrá-la.
Por isso, existem várias versões de uma mesma história em jogo: 1) a estória de Velma Duran (Shanyn Sossamon) e Rafe Taschen, escrita por uma blogueira; 2) o filme dentro do filme, dirigido por Mitchel Haven (as mesmas iniciais de Monte Hellman); 3) o documentário produzido mais tarde pela blogueira e 4) a reunião disso tudo que é o filme de Monte Hellman. Esse jogo de espelhos põe em crise todas as camadas do processo fílmico, captados por uma hibridez de formatos, gêneros e suportes, promovendo uma espécie de desorientação da realidade fílmica, embaralhando nossas percepções diante do mundo - e do cinema - e nos colocando em alerta diante da construção dos discursos políticos e culturais através do uso da imagem.
Monte Hellman leva a discussão da margem, da fronteira, a um outro nível de pensamento e reflexão. Não se trata de discutir o que é ficção e o que é documentário, nem do ponto de convergência entre eles - como muito se tem feito no cinema contemporâneo - mas de uma rarefação da imagem a partir dos signos que ela propõe. A verdade da arte e não a verdade do mundo, do outro. Afinal, mesmo a ficção dirigida por Mitchel Haven sendo delineada a partir de uma série de conjecturas, de hipóteses enevoadas acerca da morte de Velma e Rafe, existe antes uma verdade que parece indissociável do filme, que é a de que Velma Duran e Laurel Graham são a mesma pessoa. É Duran/Graham/Sossamon a grande força motriz do filme de Haven/Hellman, e é por ela que a câmera irá se “apaixonar”.

A verdade está no corpo e nunca nos fatos. A primeira sequência do filme de Haven se constrói exatamente a partir desta idéia: plano longo de Duran/Graham/Sossamon pintando as unhas de vermelho sentada à beira da cama. Se esse parece ser um plano que pouco ou nada diz sobre a história, ou sobre os fatos, ele é, sobretudo, a imagem síntese desse embate entre fato e ficção, verdade e mentira: quem está pintando as unhas? Quem é aquela mulher? Qual das personagens ela está personificando ali? O que é ela se não a própria materialização dessa fantasmagoria engendrada pelo cinema? Hellman não nos dá respostas, ele apenas nos propõe dúvidas, perguntas.
Mas Caminho para o Nada é sobretudo um filme político. Não porque sua história seja sobre uma ativista política que lutou contra o regime cubano, mas porque Haven/Hellman conduz seu filme para um outro escopo, que é o da câmera como artefato político, como arma que atira verdades para o mundo. Imagens/projéteis disseminados, que nos revelam várias facetas de um mundo completamente fragmentado e distorcido. Não é à toa que Hellman povoa seu filme com câmeras, tvs de LED, lap-tops, celulares; são eles o ponto de intersecção das elipses do filme, o ponto de encontro entre passado, presente e futuro, embaralhando as noções de tempo e espaço.
Essa relação estreita com a tecnologia, e com a maneira com que as imagens são apreendidas e disseminadas, aproxima o filme a, por exemplo, Redacted, de Brian de Palma. Em Caminho para o Nada, uma garota interiorana do sul dos Estados Unidos posta uma série de fatos e estórias sobre a morte conturbada e obscura do casal Velma e Rafe num blog na internet. É esse o ponto de partida para a realização de um filme que começa como um documentário para, aos poucos, tornar-se uma ficção. Em Redacted, De Palma parte de um vídeo postado em um blog para ficcionalizar uma verdade, criando uma ficção que é ela mesma a reconstrução de um fato, de uma verdade até então escondida e negligenciada. Ao percorrerem caminhos semelhantes em busca de suas respectivas verdades fílmicas, De Palma e Hellman parecem nos dizer que o cinema pode ser, sim, um espelho do mundo e da vida. Ainda que os fatos sejam secundários, é a forma quem nos conduz para uma verdade insondável, para uma verdade que está além da superfície.
Caminho para o Nada é, portanto, um filme autofágico, que reprocessa todos os procedimentos, formas e técnicas para criar um corpo de cinema. Um corpo vivo de cinema, que respira, que abre suas entranhas para revelar-nos suas vísceras, suas articulações, órgãos, seu espírito, enfim. Tal qual Two-Lane Blacktop, onde o cinema engole a dramaturgia através da combustão do filme para nos dizer que o filme acaba, mas o cinema e a vida continuam. Personificação das ouroboros - serpentes que devoram sua própria cauda - Caminho para o Nada reflete um estágio fecundo do cinema, uma evolução, experiência alquímica de renovação, de transcedentalização. É a resposta de Hellman para aqueles que dizem que o cinema está para morrer. Quando, o que ele quer mesmo, é viver.

segunda-feira, 4 de março de 2013

O Som ao Redor

Sobre cinema, em primeiro lugar


Sobre cinema, em primeiro lugar

Saber olhar à sua volta com os olhos de cinema e tentar aprisionar na câmera apenas o que pode ser filme é algo que Kleber parece saber fazer muito bem. Por que O Som ao Redor é um filme que propõe um movimento de experiência estética que desloca o espectador de certo distanciamento e passividade, colocando-o num terreno ao mesmo tempo familiar e incômodo, exatamente porque dilui a crítica e a afetividade num mesmo recipiente, não nos confrontando moralmente com qualquer daqueles personagens, mas nos colocando em pé de igualdade com eles. Afinal, o que são aqueles personagens se não caricaturas de uma sociedade marcada por movimentos históricos tão caros ao Brasil? A caricatura, é claro, não assume tons de cinismo ou de desdenho: os personagens são o que são, pois vivem naquele determinado lugar, envoltos em uma névoa historicista que molda as ações de cada um. O ridículo que impõe o caricatural está menos na representação do que na constatação de um estado de coisas, que revela um país caricato por si só, que se desenvolve valendo-se de certos modelos de representação que realçam o tom burlesco, farsesco do comportamento da sociedade brasileira como um todo. Em O Som ao Redor, a sociedade brasileira é uma paródia de si mesma.

Por isso, é interessante que a discussão em torno do filme tenha se reduzido a questões de conteúdo pragmático, quando o seu grande mérito está mesmo é na forma. É essa maneira de Kleber se relacionar com o cinema para coletar as suas impressões sobre o mundo que faz o filme ser tão festejado internacionalmente. Arrisco a dizer que o sucesso internacional do filme pouco tem a ver com sua contundência social. O que impressiona mesmo é como Kleber consegue criar um microcosmo de cinema que consegue dizer tantas coisas, de maneira tão inventiva e apaixonada, com um misto de simplicidade e sofisticação que poucas vezes encontramos no cinema brasileiro. Pois O Som ao Redor é, acima de tudo, um filme que se comunica muito bem com seu interlocutor, que tem clareza no que quer mostrar, promovendo um diálogo mais forte e menos pedante com seu público. Se há mesmo um trunfo, é o de encontrar nos meandros do cotidiano algo que se pode chamar de potência fílmica. E são poucos os cineastas que têm faro para isso.

Essa consciência da experiência do cinema faz com que o diretor não crie apenas um filme que é uma radiografia sobre uma classe média, sobre um Recife, ou sobre um Brasil. Kleber constrói um filme que é um feito exatamente por traduzir todo um contexto sócio-político através de uma dramaturgia do cotidiano transmutada para ser cinema, para provocar não só as discussões pelas quais a crítica brasileira de modo geral tem se debruçado (o coronelismo, a luta de classes, a violência e a transformação das cidades), mas para nos colocar diante disso que se chama de experiência do cinema. De uma relação que se dá com as imagens, e não somente com os temas.

Porque existem muitas influências em jogo, em O Som ao Redor. Nos zooms que lembram Tarantino, mas são devotos mesmo é de Hong Sang-Soo. Na maneira como a violência penetra silenciosa e invisível na vida dos personagens, tal qual nos filmes de um Michael Haneke. Na relação vital que se tem com os espaços e na câmera que acompanha menos os personagens e mais os próprios ambientes, algo aprendido com o cinema de John Carpenter (o tal João Carpinterio que dá nome à escola rural situada no engenho do personagem de W.J. Solha) – que, aliás, é influência constante no filme, principalmente quando a câmera se movimenta lentamente na iminência do horror, do suspense. Na montagem e no som, que são Chris Marker, mas também são outros. Nas várias histórias e personagens que se cruzam, ou não, numa espécie de multiplot à la Robert Altman. E há também Eduardo Coutinho, nas fotos que abrem o filme, que são de Cabra Marcado pra Morrer, e funcionam como espécie de prólogo do filme de Kleber. O Som ao Redor está todo embebido do cinema consumido por Kleber ao longo de todos esses anos. Entretanto, em momento algum Kleber usa essas referências todas como muleta, ou de maneira enciclopédica. As citações e influências aparecem de forma bastante orgânica, como um reprocessamento natural dos elementos que o moldaram enquanto cineasta. É a experiência dele com o mundo que delimita a experiência dele com o cinema.
  
Pouco se tem dito sobre O Som ao Redor ser, antes de qualquer coisa, um filme de alguém absolutamente apaixonado pelo cinema, pela experiência do cinema. É fácil constatar: basta voltar aos textos críticos de Kleber Mendonça Filho e à sua maneira, enquanto espectador, de apreender e experimentar os filmes. Kleber sempre se declarou, acima de tudo, um cinéfilo, daqueles que sentem literalmente tesão pelo que é cinema, pela maneira como o cinema e todas as suas ferramentas podem traduzir um certo "estado de espírito" diante do mundo. Esse tesão pelos filmes o coloca, tal qual um Tarantino, acima de tudo, como um cineasta/cinéfilo que reprocessa suas referências para criar algo que é inteiramente seu. Afinal, O Som ao Redor é talvez o grande tributo de Kleber a esse cinema que o excita, aos filmes e cineastas que, ao longo de todos esses anos, acompanhou de perto, e lhe deram uma noção concreta do que vem a ser esse tal de cinema contemporâneo.