sexta-feira, 24 de junho de 2011

As Margens de Tonacci - Serras de Desordem

Andrea Tonacci esteve no FICA ministrando o curso "A Margem do Cinema" e a exibição de sua obra-prima, Serras da Desordem, me fez desenterrar esse texto de 2006, quando vi o filme pela primeira vez na cobertura da Mostra SP que fiz pro extinto blog Arca Mundo. O mais importante, é que o impacto do filme continua o mesmo, e eu ainda mais fã desse gênio chamado Andrea Tonacci.

Serras da Desordem

Como um filme pode mudar nossas vidas, nossa visão de mundo, invadir nossos pensamentos, nossas almas? Essas respostas foram-me todas respondidas após o fim da sessão do brasileiro Serras da Desordem, de Andréa Tonacci.

Tonacci era pra mim, um diretor desconhecido. Mesmo apesar de saber de sua importância para o cinema nacional, quando na década de 70, ele fazia um cinema bastante underground e por isso mesmo, nunca teve o hype de diretores da época que ganharam notoriedade como Glauber Rocha, Joaquim Pedro de Andrade, Arnaldo Jabor.

Fato é que ele chega depois de um hiato de quase 30 anos - tempo em que se dedicou a este projeto - com uma das mais bonitas e essenciais obras-primas dessa Mostra e talvez de toda a história do cinema brasileiro.

Serras da Desordem é, antes de qualquer coisa, um lamento a essa civilização decadente, de valores completamente deturpados e invertidos, de um mundo que, em nome do progresso, deixou de olhar a vida e tudo o que dela vem.

Não bastasse ser o filme-vida que é, Tonacci, como cineasta e estudioso da linguagem cinematográfica, vai ainda muito além do que havia feito, por exemplo, Eric Khoo em seu Fica Comigo, ao misturar ficção e realidade. Isso porque, ao recontar a saga do índio Carapiru, Tonacci vai reencenar certos trechos de sua vida (com o próprio Carapiru, aliás). Utilizando-se de imagens documentais - que vão de filmes da época como o seminal Iracema: Uma Transa Amazônica de Jorge Bodanski, até imagens de Telejornais, também da época - busca refazer os passos daquele homem que, separado de sua tribo após um ataque de grileiros, vagou durante meses pela selva e, encontrado por camponeses, com eles viveu por um bom tempo. Mesmo sem entender uma só palavra do que diziam, fez grandes amigos, pessoas que lhe amaram, lhe deram carinho e cuidado. Após uma denúncia, é trazido pela FUNAI para Brasília, e lá, frente ao choque com a civilização, Carapiru aos poucos irá perder a fé na vida, no seu Deus maior. Por ironia do acaso, quando chamado um tradutor para conversar com o velho índio, este que vem é ninguém menos que seu filho, separado dele há 16 anos por criminosos invasores que expulsaram e assassinaram centenas de índios nas florestas desse Brasil. Carapiru será levado de volta a sua tribo, e lá vai perceber que o veneno da civilização e do progresso terá atingido seu povo. Tudo o que ele vivera ou sonhara não passa agora de uma utopia. Carapiru então desiludido e triste se embrenhará no meio da floresta, e lá, travará seu primeiro contato com Andréa Tonacci, num final de uma beleza que faz jus a esse impressionante filme que é Serras da Desordem.

Assim, o filme irá nos confrontar com essa realidade torpe de uma sociedade que, na busca pelo ócio através do progresso tecnológico, criou um imenso vazio espiritual, um distanciamento abissal do homem com a natureza, uma quebra de valores tão caros a esse planeta doente e carente de lamentos, que gritem por socorro, por um chamado divino, para que um dia nos possa vir a salvação. Talvez, vendo obras como essa, possamos despertar em nós, o desejo da mudança, da reavaliação de nossas vidas, nossas prioridades, nossos anseios, nossa verdade, nossos valores, nossa condição humana.

Tudo o que eu disser sobre esse impressionante filme nacional - mas que carrega consigo um teor imensamente global, pois no registro do microcosmos, abrem-se as portas para o macro – pode soar pequeno, bobo. Mas é sem dúvida o filme brasileiro a ser descoberto. Um filme que o mundo todo deveria ver. Me lembrou de certa forma O Novo Mundo de Terrence Malick, por ser um lamento semelhante. Com a diferença que aqui, a ficção e a realidade são uma coisa só! E o impacto disso em nós é infinitamente maior!

4 comentários:

Raul Arthuso disse...

Rafael,

Também foi uma descoberta interessante na minha vida esse filme. O descobri com bastante atraso em relação impacto da estréia do filme (ele foi bem comentado na época).

Eu discordo um pouco do teor do filme quanto ao que vc diz. Não sei se o filme é tanto assi sobre valores coletivos. Eles existem, evidentemente, mas o grande movimento do filme é da imagem do Carapiru.

As reencenações e a busca do filme em dar dignidade para essa vida esquecida através do filme se mostram frustradas quando Carapiru volta para o local do início do filme e encontra a equipe que não pode fazer nada a não ser reencenar sua vida. Há uma tragédia ambígua que é a incapacidade do filme de dar Carapiru de volta pro mundo.

Se o "desenvolvimento" e a tecnologia tiram Carapiru de seu lar no início do filme, no final fica a sensacão ambígua de que a busca do cinema (e seu aparato tecnologico intimamente ligado à revolução industrial que proporcionou ao mundo o trem do início do filme) em dar a vida de volta a Carapiru apenas tirou sua existência inocente e quieta no mundo e a transformou em uma imagem sem fundo. Carapiru, após reencenar sua vida, deixa de ser Carapiru-homem e vira Carapiru imagem, absorvido pelo sistema-cinema.

Dei uma viajada, mas é que eu senti no seu texto uma vontade de ir além mas sem saber como. Eu adoro esse filme e acho que ele pode render discussões para muitos lados ainda não explorados (e acho que a questão doc-ficção é a menor delas).

Abs

Rafael Castanheira Parrode disse...

Raul, acho que é por aí mesmo, e o papo com o Tonacci foi muito revelador nesse sentido, pq é exatemente o e ele sente sobre o filme e eu também. Por ser um txt de 2006, e eu ter escrito no calor da catarse do filme, muitas questões essenciais só foram destrinchadas numa das 6 revisões que eu fiz com o filme. Só me fica um indagação em relação a uma afirmação sua: eu não acho que o cinema e seu aparato tecnológico tenham tirado a sua existência inocente. Essa inocência já havia sido perdida há muito tempo quando o pr´prio Carapiru foi capturado pra ser devolvido para a sua tribo. O que faz o cinema pra mim ali, é rechaçar, e transformar a vida do Carapiru em um monumento de reflexão acerca de valores coletivos sim, pq não? Afinal de contas o que seria o filme senão o curto circuito causado pelo encontro do índio com a civilização? do indivíduo com o coletivo. Tonacci tenta operar sempre dentro de uma ética da imagem que em momento algum ele vai confrontar o carapiru, ele mesmo com a tecnologia e com a civilização. O final é claro pra mim. Um encontro de duas pessoas que tentavam se encontrar. Afinal, o que é Carapiru senão um alter-ego do próprio Tonacci. Acho que o filme merece mais uma pauta na cinética. Vai ser difícil esgotar esse filme...

Raul Arthuso disse...

O Daniel Caetano fez uma livro-coletânea de texto e com certeza não esgotou.
O final, já que vc citou, abre mai o filme, acho eu, no sentido de torná-lo cíclico. O fim amarra o começo, mas agora o Carapiru ganha virtualmente outro valor enquanto imagem. Se o film recomeçasse ali, ele significaria outra coisa, o que é diferente de revisar o filme. Acho que o Tonacci faz do filme, com esse final, uma espécie de "disco", como se vc ouvisse o disco, virasse o lado e depois voltasse para o primeiro lado para ouvir de novo.
De novo, especulando. é um dos grandes finais do cinema brasileiro.

Rafael Castanheira Parrode disse...

eu ainda não li o livro do Daniel. procurei pra comprar mas não encontrei. Qro ler sim. Mas acho importante pensar o Carapiru como alter-ego do Tonacci até pra dar essa dimensão que vai além do filme em si, e passa por visões de mundo de ambos, tanto do Carapiru e sua desilusão com esse novo mundo, quanto do Tonacci e sua desilusão pessoal, com a vida, família e sociedade. Essa coisa do virar o disco é um fato mesmo, pq da segunda vez que vi, em casa, eu fiz exatamente isso: comecei o filme todo denovo e que me deu essa impressão cíclica que vc mencionou. Por isso a idéia do filme-vida, que se renova, que extrapola os limites da imagem.