quinta-feira, 2 de julho de 2009

A Lógica do Horror

Tenho tido uma série de experiências muito bem sucedidas com filmes de terror contemporâneos, e é impressionante como o gênero tem nos proporcionado filmes tão relevantes dentro da cinematográfia mundial atual. Filmes como o sueco Deixa Ela Entrar, os japonêses Cure e Pulse, os franceses A Invasora e Calvário e claro americanos já consagrados como Diário dos Mortos, Fim dos Tempos e O Nevoeiro, são exemplos claros de como o mundo tem sido enxergado pelo cinema de horror.

Vejamos Deixa Ela Entrar, do sueco Tomas Alfredson. Belíssima incursão no gênero, é impressionante como o filme lida com seus clichês de maneira tão natural, tão simples e delicada. Primeiro por que há ali algo que é comum a grande maioria dos filmes citados acima e principalmente no cinema de horror não hollywoodiano feito atualmente. Há uma diluição de roteiro em prol da misé-en-scéne. A decupagem é a principal ferramenta nesse sentido, e todas os mecanismos que dela nascem. Em Deixa Ela Entrar, fica visível uma série de conceitos que estéticamente colocam o filme num patamar bem diferenciado do que vem sendo produzido em terror comercialmente. O que mais impressiona a priori é o uso incisivo do fora de campo, o mostrar e não mostrar. É claro que veremos ali muito sangue, membros decepados, mas eles sempre vão surgir de fora, de um outro espaço que a câmera não se atreve a registrar, e é daí que nasce o verdadeiro horror.


Mas e o filme como registro de seu tempo? Ah sim, há ali para além do horror a fábula sobre a infância, sobre o turbilhão de emoções, descobertas e inquietações que todos nós um dia passamos. E centenas de outros filmes já trataram desse assunto. A diferença é que Alfredson , sempre buscando a sutileza e a sugestão, apoiando-se principalmente em olhares, e claro, na premissa de horror, trará para dentro do filme algo que outras obras não almejam e nem conseguem facilmente: o registro do âmago, do que se passa dentro de nós. E é ai que reside a beleza do filme.

Para Kiyoshi Kurosawa o terror também é apenas um subterfúgio para o registro de nossas inquietações. Pensemos em Pulse, filme que de forma sinistra aborda um tema igualmente sinistro mas não menos revelador e importante: suicidios coletivos na internet. Como mestre que é Kurosawa não faz um filme fechado nesse tema. Para além disso, cria uma obra extremamente humana, existencial, sobre o fim das relações afetivas, sobre a frieza do mundo, incomunicabilidade, sobre a digitalização do mundo e por que não, da morte. É um filme apocalíptico, assim como é também O Nevoeiro, Fim dos Tempos e Diário dos Mortos.


Mas o que impressiona verdadeiramente nos filmes de Kiyoshi, é a aproximação do real, do banal, ao fantástico. Não raro, seus filmes ditos "realistas" (Sonata de Tóquio e Liscense to Live) conseguem captar quase que invisivelmente toda uma aura de fantasia que estão inerentes a eles. Não vemos nada, mas a magia perpassa por cada sequência.

Volto então a falar um pouco sobre a sugestão dentro do cinema de horror. Se em Deixa Ela Entrar e também em alguns filmes de Kurosawa ela era uma das principais ferramentas para se extrair o terror, no novo cinema de horror produzido na França essa é uma palavra banida. Todos os filmes franceses do gênero se destacam por explorar de maneira "pornográfica" cada centímetro de pele e sangue cortados. Essa "pornografia da violência" porém não me parece gratuita. Diferentemente de filmes com Jogos Mortais e O Albergue, a violência não é o fim, mas o meio para se chegar ao fim. Vejamos A Invasora (ou mesmo Alta Tensão de Alexandre Aja e Calvaire de Fabrice Du Welz). Poucas vezes a idéia de violência foi tratada de maneira tão doentia como aqui, mas o filme em si, para além da violência, me soou como um impressionante delírio de uma grávida, de uma possível depressão pré-parto (ou pós), e de todas as dificuldades e desdobramentos que imagino ser gerar uma vida dentro de si. Mulheres sabem bem, mas recomendo com força para homens que verão na carne o que pode ser isso. Nesse sentido o filme não tem a menor intensão de fazer concessões, visto que para atingir o ponto certo, o diretor Alexandre Bustillo deveria lançar mão do máximo de ultra-violência possível para atingir o efeito desejado. É o sangue e a carne como metáfora da vida!


Resta pensar por fim no cinema norte-americano e o que de relevante ele tem produzido neste sentido. Romero é referência óbvia quando se pensa em cinema de horror em qualquer parte do mundo desde a década de 70. Mas não é que um de seus melhores filmes tenha surgido a essa altura do campeonato?! Em 2008 alguns filmes se prontificaram a questionar a relevânica da imagem em tempos de internet e globalização. Cloverfield de maneira bem rasteira mostrou que basta uma câmera na mão e um upload na internet, e podemos ver tudo o que de mais absurdo acontece no mundo. Redacted indo mais além, nos disse que as informações e imagens disponibilizadas pela rede, nos mais diferentes formatos, podem nos levar à verdade, ou à mentira. Mas foi Diário dos Mortos, quinto filme da sua celebre série de zumbis que mais levou adiante uma complexa discussão sobre o poder de manipulação da imagem nos tempos de hoje. E não só! Carga humana que Romero sempre carregou em seus filmes, volta aqui de maneira devastadora e também, apocalíptica.


Apocalíptico também são Fim dos Tempos do atual mestre do terror americano M. Night Shyamalan, e O Nevoeiro de Frank Darabont. Shyamalan como todos sabem bebe muito da fonte de Kiyoshi Kurosawa (e não esqueçamos, Tomas Alfredson e seu Deixa Ela Entrar também se sacia dessa mesma água), misturando de maneira indefectível realismo e fantasia, sempre buscando o horror do banal, do íntimo. O interesse pelo extra-campo é genuíno em seus filmes, sempre nos colocando num jogo entre o ver e o imaginar!E o roteiro é diluido para dar lugar a ambiências e não para tentar dar uma lógica interna ao filme(que pra mim é completamente dispensável, principalmente se pensarmos num gênero como o terror); para Shyamalan, a "verdade" (verdade fílmica) está na imagem - e suas infinitas possibilidades - e não na lógica. Seus filmes, mais especificamente Fim dos Tempos parecem querer dar conta de uma série de questóes caras a sua obra como relações pessoais, família, incomunicabilidade, fé! E Shyamalan fantasia seus filmes como gêneros (terror, hqs, sci-fi, magia) para extrair disso, algo para se falar sobre cinema, sobre vida, mas principalmente sobre a fé nisso tudo.



Surpreendentemente é o que Darabont faz também em O Nevoeiro. Se há a princípio toda uma preocupação em "não mostrar", na segunda metade do filme, tudo é mandado as favas e ele nos confronta com o absurdo do "ver". É um retorno a uma idéia antiga de filmes B que foi muito deturpada ao longo dos anos, de usar o grafismo do óbvio, para nos mostrar as sutis entrelinhas da vida. O Nevoeiro fala muito sobre sociedade e religião e o apocalipse é consequência de uma constatção que está ali na tela.

Se vermos todos esses filmes juntos, veremos ali as inquietações desses artistas diante do mundo e que me interessam muito como espectador de cinema. Inquietações não só para com o mundo, mas também para com a arte. E é ai que reside a grande magia do cinema (principalmente do cinema de horror); na possibilidade de poder enxergar o mundo através do absurdo, do ilógico, do irreal. Pra quê lógica nisso tudo?